quarentena dia sem / 2020
uma confissão de tantos dias em confinamento: cada dia que passa só quero saber mais das coisas que dão estalinho na boca. tenho até pensado que quero envelhecer - ser uma senhorinha dessas de casa bordada.
tenho tanta preguiça quanto coceira: azedo só é bom por contraste.
abro uma garrafa de vinho quando acordo - às duas e vinte e dois da manhã. quase mando uma mensagem pra ele, perguntando se tem tudo bem; mas me lembro que eu mesma lhe disse: “beber pra dormir, no atual momento, não significa nada além”.
sonho em pares, em fundos de gavetas e pássaros machucados. não faz nem dia, nem sol por aqui.
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quarentena dia vinte e três
cada dia que passa, madrugada adentro, há mais janelas acesas - só daqui vejo seis, em um mesmo prédio. a vizinha debaixo passou a regar as plantas do quintal só depois da meia noite, o casal do apartamento cinco coloca o lixo pra fora por volta das duas da manhã (ouço o sino da porta e o barulho de plástico) e que é mais ou menos no mesmo horário que uma senhora do prédio da frente liga sua barulhenta máquina de lavar roupas.
um constrangimento que não disfarça a tristeza, me acompanha no fio dos dias: o som das ambulâncias e carros de polícia que cortam os fundos desse quarteirão (tem muita ambulância correndo), a criança de no máximo cinco anos que grita todos os dias “viva bolsonáiiiiro”
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às dez e meia da manhã, o barulho das carreatas e buzinaços que entoam o hino nacional completo a cada semana (ouço a avenida paulista daqui) e, com a clausura sem perspectiva, tem sido cada vez mais recorrente ouvir brigas de casal ao invés de bateção de panelas.
se já posso ver o céu e a lua sem espelho retrovisor... continuo sem vista para cidade ou a rua pois existe um corredor, longo e vermelho, que rompe o agora daqui. só escuto: pela televisão alheia, pela goteira precisa em cima do meu travesseiro ou pela concha acústica formada por esse triângulos de prédios.
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quarentena dia d
as louças tem se multiplicado numa velocidade que já não acompanho (e tenho medo de acumular talheres sujos desde que ouvi a história de espíritos que abrem e fecham gavetas da cozinha). tomo suco em um copo que ao pousar na pia se faz três. talvez a louça esteja se proliferando proporcionalmente a quantidade excessiva com que venho fumando.
ao inadequado horário das treze horas e trinta e dois minutos, religiosamente, tenho tesão. uma única taça de vinho durante a tarde tem me deixado bêbada o suficiente pra participar de debates ao whatsapp e enviar áudios de 8minutos. quando não são as vinte quatro horas completas em casa, parece mais fácil e rápido arear panelas e não quebrar xícaras.
agora, toda semana quebro alguma louça florida. seria minha avó me deixando para trás? não posso me esquecer de como era beliscar suas verrugas.
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estamos crus e escrotos.
todos.
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quarentena dia f
embora já tenha dito que me interessa sempre aquilo que está cru. não quero mais, estou farta e indigesta. agora desejo ovos cozidos, carne de porco torrada, leite talhado pelo apito da chaleira e cutucar favo de mel amarfanhado dos dentes. só ingiro o que ocupar meu lado de dentro: fermento, fumaça, açúcar e bacon.