Existe uma proteção que diz que para se livrar de alguma maldição é preciso esfregar, sem quebrar, um ovo sobre todo o corpo e ao fim quebrá-lo em água corrente. Sempre pairou entre as mulheres de minha família um boato de boto y praga. Inverto a ordem sem medo do caos, com alfinetes que furam o ovo sem quebra-lo, espeto recortes de um autorretrato como num voodoo também reverso e selo a obra emoldurando a montagem em devido quadro envidraçado que antes guardará na parede da casa da minha mãe a foto de casamento dos meus avós.

Obs: A prosa reproduzida nesta obra é uma primeira versão da poesia que se desdobra, na mesma madrugada, em Frontal (2021). Ambas as obras partem da mesma provocação feita na oficina de poesia Alugo sua raiva da Revista A palavra solta (RJ) em torno da vida e obra de Hilda Hilst. "O fio que tece minha avó" e emerge nesta primeira versão do texto veio através das memórias de visita na Casa do Sol - espaço conventual que Hilda construiu para mudar seu estilo de vida e dedicar-se a própria produção, não em um sentido de retirada do mundo e contexto social, pelo contrário, por uma paixão em concentrar-se nos encontros - puxando o fio pra tecer… que me remete as condições pelas quais passei a morar na casa antiga que guarda todos os pertences de cada morto (que nem conheço) de minha família e que era de minha avó. Uma casa sem tempo, em São Paulo e que ainda entra sol em todos os cômodos.



Toda semana estilhaço alguma louça florida - minha avó me deixando para trás? Não quero me esquecer de como era cutucar suas verrugas. Estou farta e indigesta. Agora desejo ovos cozidos, carne de porco torrada, leite talhado pelo apito da chaleira e cutucar favo de mel amarfanhado dos dentes. Só ingiro o que ocupar meu lado de dentro: fermento, fumaça, açúcar e bacon.

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Ovo. Coleção: Quem tem vó não teme, 2021