meia noite em vênus ou em minha defesa a lua está cheia
das atividades cotidianas que, cínicas, dissolvem o tempo: fumo muito, cozinho com exagerado tempero e fico feliz quando o cesto de roupa suja finalmente se enche não só de peças pretas.
encontrei, no fundo da gaveta que definhou guardando bainhas de saia a serem remendadas, um envelope: "carta aos que ficaram por um triz".
queria declarar todo afeto impensado que coleciono por coisas, pessoas e coisas das pessoas: a pinta no nariz da irmã, a estampa da camisa do amigo, a má dicção de uma palavra, o sono mole, o dente sujo de batom da avó…
acredito piamente na teoria do absurdo, no ócio orgástico, em ruas sem saída, em se fazer de bela para solidão, em boto cor-de-rosa, em calcinha que não se enfia pelo cu e em quem mantém o hábito de comer com gosto casquinha de machucado.
quero ser amiga dos fracos que não socam a água que sai dos olhos goela a baixo. ter o amor dos medrosos porque, por incrível que pareça, são os de sentimentos menos cautelosos. quero a companhia dos que já perderam as duas pernas e me dedicar aos que deixam tripas expostas.
tocar em quem gasta tempo no avesso e bolor, em que já hospedou berne na cabeça. gostar de quem derrama bebida e lambe o rastro no chão, dos que dormem em casa inóspita e recorrem à lareira para secar as toalhas manchadas de cabelos tingidos.
dos que escondem ácaros entre os próprios pêlos e segredos, dos que coçam com a ponta da faca e comem tudo com casca.
fico com quem quebra pratos, não lustra copos, enfeita a casa com delicadas folhagens e chuta, bate, abre e fecha portas - para nunca sair de fininho - com a falta de medo que não é exatamente um sinônimo de coragem, mas só as madrugadas nos fazem.
as que pegam coisas com o pé, guardam terra debaixo da unha e coçam os olhos sujos até delinear o globo ocular. quem corta cebola rotineiramente para destrancar o dilúvio e possui torneirinhas de asneiras, graças a deus. porque quem tem dó de jogar sal em corte aberto, é também quem sabe que sangue e mel tem as mesmas notas.
espero não me surpreender com as cores da mata depois de toda essa chuva, só porque me acostumei com o fúcsia possível dos pixels. pedro me contou que os chineses estão plantando algodões no lado obscuro da lua e talvez, nasçam bichos de seda por lá. ele não sabe o que isso significa. nem eu. mas temos certeza de que isso muda tudo.
que não nos falte o motim cativo:
nos rios de todos os dias ao mar de nunca mais
quem briga com bicho, perde.
obra audiovisual homônima selecionada em: Art Veine (Portugal), Linha Mestra (Tocantins) e Homeostasis Lab (Brasília - DF).