inseticida / 2020
o azul dos maços de sempre-viva - do mesmo tom que refletem os supostos olhos das moscas - sempre me causaram nevralgia. dizem que, no dia que nasci, essa dor tingia o céu - a cor de quando o sol perde para terra. na primeira noite em que sangrei e não morri, cuspi pelo umbigo um botão da flor azul. ao levá-lo entre os dentes, do ácido e áspero que tingia a boca, salivava pelo horror de me ter mais pálida que os corpos que aguardam na beira do rio a queima e mais bisbilhoteira e incômoda que as moscas.
a morte e a água refletem os mesmos feixes azuis sob a pele vermelha e a mata úmida que cresce ao redor de todas as frestas.
morta feito mosca. com verme na barriga. e como o primeiro botão da flor que pari, o sufoco não me faz definhar. movo-me sem que seja preciso seguir o norte apontado pelas encardidas unhas de meus pés, enxergo do breu à prata amarfanhada em meus fios e pêlos. pairo, vezes vermelha, sob as camas que zelam a imagem e semelhança do objeto que me dilacerou. gozo do aroma daqueles que não compreendem cada botão regurgitado - faço questão de circundar o globo ocular de cada um e roubá-los depois. em troca, deixo-lhes fiapos imundos para que cubram os olhos.
língua azul de tão preta, desde o dia em que comi maldito botão. seios esgarçados pelo verme que alimentei no mais escuro da terra.
vagueio.
sempre-viva,
churel.
10interpretação poética do mito paquistanês “Churel” publicado por org. Medéia (tradução para inglês) / Londres, 2020