Entrevista concedida em 2021 para o portal Como eu escrevo, do curador e pesquisador José Nunes - projeto veiculado a Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo.

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José Nunes: Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Maria Olivia: Hoje em dia estabeleço uma relação mais espontânea e desprendida com minhas próprias produções — percebi que é a maneira como posso jogar com as inseguranças e a ansiedade. Por muito tempo, o que ia para a gaveta (ou a pasta arquivo do computador — praticamente uma lápide digital) ficava ali esquecido, perdido, como uma promessa jamais entregue de um passado que não se realizou por um triz.
Então, nesse sentido, pode parecer bizarro mas o imediatismo das redes sociais me ajudaram, e ajudam, muito. No mesmo instante em que redijo um texto, publico no meu perfil — sem revisar, sem pensar duas vezes, aquele impulso súbito em detrimento da necessidade de expurgar e até por isso me refiro a alguns escritos como “gorfos” — e isso também diz respeito a essa dinâmica que acabei criando, rola uma adrenalina de ver todos os outros sentidos que a ideia pode tomar a partir da leitura do outro. O que essa frase aqui vai se tornar? Não sei…
Foi uma maneira de sacanear e burlar minhas expectativas, “o que será daquele texto?” é uma curiosidade para mim também, porque ele (o texto) é o que acontece dele no outro e não do outro para mim — em relação a ele. No momento em que publico algo, aquela obra deixa de ser inteiramente minha, ela acontece incontrolavelmente em uma ou cem pessoas — tanto faz, mas acontece.
Coisa que tem bastante a ver com um dos debates que mais me valem na arte no que diz respeito a ideia da propriedade intelectual. Uma entrevista veiculada pelo portal Volume Morto que chama: “Artistas do mundo todo, desistam!” do [conjunto vazio] um coletivo de Minas Gerais que teve sua última ação em 2016 é um manifesto a que sempre recorro para recuperar o fôlego. Não vai dar pra me alongar sobre isso aqui né? Mas deixo a indicação de leitura da entrevista e aproveito pra frisar que compactuo com as políticas creative commons, com a distribuição de revistas gratuitas, com tráfico de PDFS e afins.
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JN: Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
MO: Lembro de escrever coisinhas desde muito cedo, recém alfabetizada mesmo, e guardo até hoje os papeizinhos e cartinhas que escrevia — eram todos tristes, contando que chorei, pedindo desculpas… o que me faz pensar que as palavras sempre foram meu espaço para a melancolia ou algum tipo de conversa direta com Deus — e, como manda o roteiro romântico, manuscritas. Por ora, os “gorfos” também não deixam de ser minhas rezas furiosas.
Até pouco tempo atrás investia pesado em cadernos bonitos, papel pólen sem pauta e boas costuras, mas sempre rolou uma idealização romântica do caderno/diário/livro do artista, sabe? Cresci idolatrando materialmente esses escritores, e seus cadernos de registro de campo, entre desenhos e garatujas nas quais até a rasura fica bonita e cheia de personalidade… como a história em On the Road. Mas entre a angústia que se interpela no livro de Jack Kerouac a respeito do narrador que se limita a observar e não diretamente ser personagem em cena da própria história.
Mas um dia, tomada pela ira — a ponto de reconhecer que tamanha brutalidade estragaria a metódica expectativa que buscava realizar nas folhas e tintas de caneta em cadernos imaginários e perfeitos, fui ao computador confinando que o plástico do teclado fosse mais resistente do que as folhas de textura gentil, e aí parece que saiu mais rápido, sem tanta racionalidade e autocrítica no processo (tinha menos estética e superego em jogo diante de uma “folha” virtual; que é em si a própria metáfora da folha e portanto não “existe”). Tem alguma coisa aqui que me permite mais o erro, um conforto acolhedor com e pelo o feio e o malfeito — fico bem mais a vontade.
Desde então, escrevo direto no computador e nas plataformas mais inadequadas para a concepção de texto. Tenho uma conversa comigo no WhatsApp e redijo tudo por ali, meu maior backup esta ali. Teve até uma época que eu quis lançar um projeto “Escrevo longas cartas via WhatsApp” porque o texto vem pra mim desse lugar nebuloso, um acontecimento, e comecei a perceber quantas conversas acabavam virando longas confissões poéticas ou textos argumentativos, então… por que não, né? Então quanto mais “desadequado” o espaço melhor: legenda do Instagram, publicação de Facebook, digitar pelo celular mesmo…
Além disso, o ambiente virtual é bastante confortável para mim — não que eu seja literalmente uma nativa digital, mas — inerente a minha geração, fui bastante autodidata nos processos criativos que envolvem softwares e grande parte da minha produção visual atualmente competem ao ambiente intermídia.
Ainda assim, a materialidade do texto, das coisas e dos afetos ainda me importam, e muito — por isso mesmo meus experimentos poéticos e pesquisas acadêmicas estão sempre relacionados a articulação dos suportes em certa oposição às linguagens adequadas e também através da produção de objetos, bordado, colagem, temas corpóreos e textos bastante descritivos de suas paisagens.
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